domingo, 15 de novembro de 2009

A Filosofia como palco da luta de classes*


A práxis é fundamental para o verdadeiro saber. Paradoxalmente, essa conclusão só pode ser comprovada na prática. O conhecimento ensimesmado apenas se auto justifica, criando abstrações que, por irônicas coincidências, podem ter aplicação real. Ou não.


Até hoje, a Academia se debruça sobre os argumentos de Platão e Aristóteles. Sem desmerecer a importância epistemológica destes, e dos demais autores ditos clássicos, mas seus postulados são reescritos a cada geração, como se houvesse um surdo pânico de que se perdessem a minúcias de seus excertos nos ecos do passado. Não exatamente a perda do significado literal, denotativo, dos textos, mas da forma de raciocinar e compreender o mundo. Esse temor se justifica num breve exame, além da superfície, sobre os nomes que se destacaram no desenvolvimento da história das idéias. Quantos não terão sido os gênios enterrados na vala comum, sem louros ou glória? Quantas idéias foram soterradas, ou abortadas em processo de maturação?

A questão que emerge então é um lugar-comum da própria filosofia: a história é contada pelos vencedores. O outro lado da moeda, de que essa assertiva não invalida a tradição dos vencidos, é simplesmente ignorada no terreno do conhecimento, desnudando o caráter arbitrário e autoritário daquele ambiente que deveria ser ventilado pelas mais profundas aspirações de liberdade de expressão, mas que age como verdadeira liturgia das determinações do que devemos e podemos pensar.

Nas cíclicas, porém eternas releituras, à ausência do espaço público, da morte da política enquanto expressão de humanidade, problemas concretos do mundo atual, é invocada mais uma vez a Grécia, amaldiçoada pela arrogância de almejar feitos inauditos e discursos memoráveis à danação perpétua, jamais se permitindo o descanso dos escombros do que foi aquela civilização. Ou ressuscitam da Civitas Romana o conceito de República. De tal modo que, ou retroagem ao modo de produção escravista da Hélade, ou se aferroam a um regime censitário que se arvorava sapiente e moralizante na condução dos negócios públicos. Em qualquer dos enfoques se revela a opção, racional ou intuitiva, a partir de um ponto de vista, qual seja, o da classe dominante.

Os detentores do saber filosófico da Idade Média se filiaram por afinidade classista, a cada uma das correntes de pensamento que conhecemos até os dias de hoje e expurgaram, sob pena de heresia, toda e qualquer oposição. Heresia, palavra que sofreu adulteração em sua prévia acepção. Na origem, herético era aquele que escolhia ou optava por algo – concepção absurda para a dogmática patrística1. Daí derivaram os tomistas aristotélicos e os neoplatônicos, que na verdade mal disfarçam a velha dicotomia entre idealismo e materialismo, sob o manto do cristianismo no que essa ideologia teve de pior: intolerância, ignorância e promiscuidade com o poder constituído. Outro termo que foi completamente deturpado foi o próprio adjetivo que nominou a Igreja: católica (isso um dia já significou universal, abrangente). A ousadia de enfrentar a aliança entre dois mundos custou rios de sangue aos torturados pela Inquisição, ou apenas as trevas da invisibilidade intelectual.

Com o Renascimento, esperanças de se romper as amarras escolásticas2 vieram à tona. Como pano de fundo, uma nova classe começava a contestar o poder vigente. Logo, se apossaram da filosofia como instrumento de divulgação e propagação de suas idéias, o que num primeiro momento foi positivo, pois deu vez e voz àqueles que estavam à margem cultural do mundo, mas depois acabou a transformando em algo inócuo, mais um ornamento entre as posses que os mais distintos cidadãos exibiam. A filosofia se tornou um gato de palácio. A erudição virou pré-requisito para se pensar. E ser culto, sinônimo de chique; citar em outro idioma, então, virou garantia de respeito e admiração. Muita pseudofilosofia foi vomitada para a alta sociedade se entreter, entre uma ópera e um baile de gala.

Rousseau foi renegado. Era um sans culotte3, cujo extrato social jamais havia tido oportunidade de manifestar suas opiniões. Quando surgiu, pela originalidade de sua verve, foi inclusive condecorado. Laurear um iniciante, mesmo contendo uma interpretação que violava os cânones da ordem vigente, não causava qualquer risco para o regime. Ao contrário, soava como um gesto nobre de condescendência. Contudo, quando ficou explícito o potencial revolucionário de seus argumentos ele foi defenestrado dos ambientes vetustos. Os Enciclopedistas lhe viraram a cara. Suas obras foram queimadas em praça pública, expediente que tempos depois vimos o nazismo utilizar. Um dos arautos da burguesia (Voltaire) se prestou ao papel de humilhá-lo, tal qual um suserano diante de um vassalo.

Marx iniciou seus estudos superiores na cátedra do direito. Contudo, seu pendor para a sistematização racional, e seu horror ao senso comum engessado dos juristas o levou à filosofia. Conquistou o doutorado com a tese “Diferenças entre as filosofias da Natureza em Demócrito e Epicuro”. Seu legado teórico é imensurável. Foi o primeiro a se tocar que aos filósofos não bastava a mera contemplação do mundo: urgia transformá-lo. Porque para Marx, a filosofia se interligava com a revolução. Apesar desse aporte intelectual, e do enorme fôlego que ele concedeu a essa disciplina, não tardou para que também fosse enxotado da Universidade. Talvez seus professores tenham adjetivado seus escritos como levianos, panfletários, dispersivos, ou ainda imprecisos historicamente.

A triste constatação é que graças a essa postura, a filosofia é tão enfadonha para quem vive no dia a dia, as agruras típicas de uma sociedade de classes. E é por isso também que há uma imensa dificuldade de explicar – honestamente – qual sua utilidade. Todo aquele que anseia mudar o mundo se ilude e se decepciona com a filosofia. Ela tem por escopo ser conservadora. Ela não liberta do senso comum. Não está no seu programa ser acessível à plebe rude. A filosofia é a porta voz das idéias da classe dominante. E a ferramenta retórica dos detentores do poder. Todo tirano traz consigo um filósofo a tira-colo para dar materialidade ao seu aparato ideológico – que a princípio seria insustentável, mas que pelas armadilhas terminológicas torna-se palatável, e aceito pelos corações mais ingênuos.

Althusser enxergou a luta de classes no campo da educação. Também vislumbrou a outra faceta da filosofia: como arma revolucionária (desde que tomada de assalto da burguesia; mas ainda assim, um óbvio instrumento de classe). Se tivesse prosseguido nessa linha de pesquisa teria condenado toda a filosofia como expressão ideológica da burguesia. Em outros períodos, em outras configurações de classe, já foi o substrato teórico dos senhores de escravos, dos reis, dos bispos, etc... Hoje, a verborragia filosófica se perde em quinquilharias gramaticais e em reinterpretações que não têm possibilidade de responder aos dilemas contemporâneos. Em uma palavra, inofensiva.

A contra-história da filosofia já está sendo escrita por Michel Onfray. É mais um resgate dos que foram massacrados por milênios de moral cristã e ética de castas. Os manuais, os compêndios, as enciclopédias, os trabalhos universitários evitam cautelosamente esse imenso continente do conhecimento. Graças a isso, só conhecemos as figuras mais austeras e menos interessantes da filosofia. Porque será? Porque se fosse admitido o caráter classista dessa matéria, se compreenderia o favorecimento dos pensadores que trabalharam segundo as suas tendências e a exclusão consciente de todos os traços de uma filosofia alternativa. Daí a ocultação tantas ideias reveladas por personagens furiosas.

E quais os pontos em comum destes indivíduos? A preferência pela sabedoria prática, pelo vocabulário claro, pela exposição límpida, pela insurreição e pela liberdade de fato. À maneira dos sábios, todos eles menosprezaram a linguagem hermética e obscura, a filosofia só para filósofos, as discussões de especialistas, os assuntos próprios de profissionais, as justificativas para a opressão e fizeram-no porque pretendiam fazer da filosofia uma arte de viver – de viver bem num mundo melhor.

* Há um projeto de desenvolver essa tese de forma mais aprofundada e afrontosa, em âmbito acadêmico.

1 A filosofia dos santos padres, que criaram esse monstro de iniquidades que foi a Igreja medieval.

2 Sistema teológico-filosófico surgido nas escolas da Idade Média e caracterizado pela coordenação entre Teologia e Filosofia. Manteve-se em alguns estabelecimentos até os fins do século XVIII.

3 Do francês "sem calção". Era a denominação dada pelos aristocratas aos artesãos, trabalhadores e até pequenos proprietários participantes da Revolução Francesa. Recebiam esse nome porque não usavam os elegantes culottes, espécie de calções justos que apertavam no joelho que a nobreza vestia, mas uma calça de algodão grosseira.

2 comentários:

Márcio Scott Teixeira disse...

Primeiramente uma questão:
Pode ser feito um paralelo com aquela música do cazuza "enquanto houver burguesia não vai haver poesia" e afirmar que enquanto houver burguesia, também, não haverá filosofia?

Marco disse...

Comentário do Renan, em 10/05/2010, às 15:26:14:

Comentários sobre o texto A Filosofia como palco da luta de classes.



No geral não tenho nenhuma objeção ao seu texto. Sem dúvida, a filosofia acadêmica é a ideologia de reprodução da lógica de produção. No entanto, isso também ocorre com todas as outras areias de conhecimento, basta lembrar que Foucault é o teórico inspirador das várias correntes reacionárias da historiografia dominante. O fato de Foucault ser o teórico inspirador a historiografia reacionária não é por um acaso, uma vez que Foucault destina todo seu esforço teórico para negar a luta de classes e o conceito de poder formulado pela tradição marxista.

A questão é que a academia não é, e nunca foi, o espaço da “reflexão livre” – no sentido de poder ser ou não o espaço da crítica radical – mas ao contrário, a academia hoje é o espaço do pensamento único, isto é, o pensamento do capital. Não se pode cair na ilusão de que as classes dominantes abrem brechas para a práxis subversiva.

A academia moderna pensada pelo capital (e para o capital) não pode ser o espaço “que deveria ser ventilado pelas mais profundas aspirações de liberdade de expressão”, pois se fosse desse maneira, ela se auto-negaria, uma vez que sua razão de ser é a reprodução ideológica da produção capitalista e não do pensamento livre.

No entanto, do meu ponto de vista, a práxis subversiva deve atuar tanto no confronto direto com os ideólogos do capital, arrancando fagulhas livres de um espaço homogêneo, quanto na construção de seus próprios espaços, que mais cedo ou mais tarde também entram em confronto direto com os ideólogos.

Quando me refiro aos ideólogos, estou me referindo a todos os teóricos de primeiro escalão até aos professores periféricos de um país periférico. A expressão ideólogos também evidencia a importância deles para a sobrevivência do sistema, pois a ideologia é uma componente indispensável para o todo social (do capital). Desse modo, a “verborragia filosófica (não) se perde em quinquilharias gramaticais e em reinterpretações que não tem a possibilidade de responder aos dilemas contemporâneos”. Na verdade, são essas re-significações de Platão e Aristóteles que permite que se chame o camponês oprimido e o latifundiário opressor de cidadãos, e o Estado Brasileiro de Democrático. O fato é que a teoria em geral é um discurso apurado para responder os dilemas contemporâneos, ou melhor, para justificá-los e nos fazer engolir as justificativas. Não obstante, não são todos que conseguem digerir o que os ideólogos nos oferecem para comer, e então vomitamos. É nesse espaço de confronto no qual os filósofos-ideólogos empurram sua ideologia, e por outro lado, os filósofos subversivos não aceitam a ideologia dominante é que ocorre a luta de classes na teoria, ou melhor, a filosofia é o palco da luta de classes.