A miserabilidade do ser humano desafia todos os limites do razoável. Apesar de sonhar com um mundo melhor, mais justo, em que as condições de existência sejam mais prósperas, creio que entreguei os pontos.
Comecei a capitular ao assistir esse singelo vídeo, de uma “pegadinha”:
Excesso de sensibilidade, diriam os brutos. Mas a brutalidade não é inerente à natureza humana. É um traço que adquirimos em razão do modus vivendi que nos infligimos. Aliás, associo claramente a evolução da espécie ao aprimoramento ético-moral dos seus indivíduos. Vejo os homens em relação aos animais como Deus em relação ao homem, por sua posição hierarquicamente superior. Ao vivenciar uma situação de humilhação constante, de tortura permanente, blasfemamos contra a possibilidade de um ser superior. “Se Ele existe, por que não olha por nós?” Algo análogo devem sentir os animais em relação à raça humana: quanto o mundo seria melhor sem a presença destes símios despelados!
No direito, aprendemos a distinguir as figuras do furto de uso e do furto famélico, que configuram excludentes de ilicitude (seja por atipicidade da conduta, estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta adversa, o que não vem ao caso). Roubar (ou, no limite, matar) para comer, para manter-se vivo, não é crime. Ou ainda que seja crime, não é passível de punição, posto que é justificável. Assim, na natureza, ao nos depararmos com as feras que abatem suas presas, observamos que o objetivo imediato é sempre a alimentação, e o remoto é a conservação da vida.
Rousseau, ao estudar a natureza humana, distingue dois caracteres inatos (que por sinal, estão presentes em maior ou menor escala, nos demais seres viventes): o amor de si (amour-de-soi) e a piedade (pitiè). Muita digressão existe em torno da precisão destes dois instintos/conceitos, mas aqui nos interessa compreender basicamente que amor de si (que é o oposto do amor próprio, fruto da sociedade) é o sentimento da luta pela vida natural, superando as adversidades e intempéries próprias da existência na terra. A saciedade da fome, da sede, ar para respirar, enfim, essa busca encerra o que Rousseau chama de amor de si. Já a piedade, cuja tradução não é exata, se revela na aversão à crueldade: é comum às espécies a repulsão ao sofrimento alheio. Nenhuma mãe, ao menos entre os grandes mamíferos, deixa de se condoer ao ver sua cria inerte, prostrada, vitimada por qualquer circunstância. Os exemplos se proliferam.
O amor de si é o que garante a preservação do indivíduo; a piedade, da espécie. Apesar disso, o que choca Rousseau é o fundamento sobre o qual se assenta a sociedade: a morte, aquela que aparta o ser humano da natureza, e o transforma numa criatura artificial: “Os animais que você come não são aqueles que devoram outros, você não come as bestas carnívoras, você as toma como padrão. Você só sente fome pelas criaturas doces e gentis que não ferem ninguém, que o seguem, o servem, e que são devoradas por você como recompensa de seus serviços”.
Voltando ao meu percurso, aquele vídeo levou a outros, notadamente o de massacre dos golfinhos no Japão. Um horror já conhecido e divulgado nos grandes meios de comunicação. Navios pesqueiros, com suas enormes redes de arrasto trazem consigo toneladas de peixes. Sem se importar com as implicações comerciais, os golfinhos imaginam-se convivas de um banquete sem precedentes. É aí que o regalo se transforma em suplício, cujos pormenores, de revirar o estômago mais forte, não serão tratados aqui. O único detalhe que não pode passar em branco é que a matança não tem fins alimentícios: as carcaças são devolvidas ao mar de sangue. Há quem traga o apelo cultural à baila, mas o consumo dessa iguaria é reduzidíssimo.
Em um sítio português, caloroso debate gira em torno desse tema. Salta aos olhos que a questão se desvia completamente em direção ao nacionalismo. Os japoneses (e, de roldão, os orientais) são os responsáveis por essa ferida aberta na humanidade. É uma barbaridade da cultura atrasada, do despotismo oriental, na ausência da cristandade, ou sei lá eu o que. E estes se julgam superiores aos que focalizam o tema apenas sob a perspectiva monetária (análises que demonstram que os maus tratos são contraproducentes do ponto de vista financeiro).
Na verdade, não há muitas diferenças quando a fábrica de desculpas chafurda nas mesmas contradições. Fiquei pasmo com o seguinte comentário: “Esse vídeo faz-me chorar de dor e raiva... [faço] tudo o que posso [para] evitar [produtos] vindos do Japão e lojas de chineses nem entro e peço aos meus amigos para fazerem o mesmo... Aliás os meus cremes de rosto eram da Kanebo, uma marca japonesa... esta semana mudei para uma só de produtos naturais da Suíça. É pouco mas é um começo...”
É o começo... da miséria. Da miséria explícita. De outra parte, um japonês ofendido com as agressões que quase tomam o vulto de um conflito internacional, resolveu publicar o que há de mais hediondo no assunto: massacre de golfinhos e baleias nas Ilhas Faröe, cães e gatos na Coréia e na China, vacas nos EUA (criadas em escala industrial, conforme uma linha de produção), porcos nos EUA (mesma dramática situação), cangurus na Austrália e focas no Canadá (com a agravante que devem ser apenas as focas filhotes, pois o pelo é branco, belo, ideal para casacos majestosos que ornam a alta sociedade).
A vida poderia ser bem menos ordinária. Por isso não faço nenhuma questão de divulgar o link. Aliás, em nada engrandeceria a força dessa causa a estúpida exibição de imagens. Nesses casos, em minha opinião, é sempre torpe a cumplicidade do cinegrafista. Isso sem considerar a utilização de animais para experimentos científicos (a tortura perpetrada sob o pomposo nome de vivisecção), para os bizarros espetáculos como touradas, rinhas de cães e galos, os lamentáveis abusos ocorridos em circo e mais uma mácula no mais alto grau de civilização ocidental: o foie gras, fígado de ganso ou pato superalimentados com uma mistura de milho, gordura e sal socados goela abaixo, iguaria très chic nas mais requintadas mesas.
Se as paredes dos matadouros fossem de vidro, visíveis ao público, o número de vegetarianos seria exponencialmente maior. Há as ressalvas da comida Kosher, tradição judaica, que faz o certo por linhas tortas. Mesmo esquema de leis dietéticas existe no Islamismo, chamado Halal, e no movimento Rastafári, denominado I-tal. São rigorosos procedimentos de variadas origens (filosóficos, ritualísticos ou mesmo práticos e higiênicos) quanto ao método (obedecem a preceitos bíblicos ou corânicos), preparo (a execução não deve causar sofrimento e o sangue deve ser totalmente vertido) e escolha (porcos e camarões são proibidos por serem necrófagos) dos alimentos. Mas que numa sociedade tão desnaturada como a nossa, ao invés de sanar uma tragédia acrescem outro problema: esses cuidados encarecem os alimentos!
Abriria mão de toda essa cantilena se fizéssemos o seguinte experimento: num cercado para observação, colocássemos uma criança, uma maçã e um coelho. Se a criança comesse o coelho e brincasse com a maçã todos os meus argumentos cairiam por terra. Mas não é esse o caso, pois isso é contra a natureza. Assim como é contra a natureza a reificação dos bichos, a criação para fins de abate, algo como em Matrix, uma espécie que através privação de sua vida fornece energia vital para outra.
Blog do Márcio.com.br: Quanto mais eu conheço os homens, mais eu gosto dos meus cachorros.
10 comentários:
Esse texto é complicado analisar, pois qualquer posicionamento que eu tome será interpretado de maneira diferente do que eu penso.
Quando assisti o vídeo me lembrei, imediatamente, da propaganda da WWF que mostrava catástrofes naturais e tinha como tema "My Way" na voz do Sinatra.
a pesquisa foi massa, mais o melhor de tudo foi a frase no final.
Imagine o desapontamento de um professor, instigando o debate na sala de aula e um aluno responder: "qualquer posicionamento que eu tome será interpretado de maneira diferente do que eu penso". É a falência da capacidade humana de se comunicar racionalmente!
Lembrei da propaganda, até procurei (sem sucesso) no Youtube.
Na verdade, andei me aprofundando nesse tema e tem coisas muito bem elaboradas, que fazem meu texto de ser motivo de vergonha (no mínimo, pela ignorância no assunto).
Tem um filme, Earthlings (terráqueos), que é revelador e perturbador. As instâncias da igualdade que temos que superar são: sexismo (um sexo se achar melhor que o outro), racismo (uma raça se sobrepor a outra) e o especismo (uma espécie usar das demais como objetos). O filme divide o especismo em cinco categorias: Bichos de Estimação, Comida, Peles, Entretenimento e Ciência. Concorreu ao Oscar em 2007 e é impossível ficar indiferente.
Tem um pensador que escreve sobre isso também. Chama-se Paul Singer, australiano, professor de Ética, autor de um livro chamado Abolição Animal.
Uma correção no meu texto: a caça aos golfinhos tem um cariz mercadológico: é vendida como carne de baleia falsificada, pois a pesca destas é proibida.
Apesar de não querer ser mau interpretado acabei sendo, não sou favorável a banalidades, como as do vídeo, a seres de outras espécies, aliás nem consigo assistir documentários sobre caça entre os "bichos", entretanto, como todos nós já escutamos falar, o ser humano só sobreviveu às glaciações pq nós também comemos carne de outros seres e com isso não podemos abidicar de tal fonte, somente, por motivos do "coração", é a velha disputa razão x emoção.
Sobre o vídeo da WWF que mencionei a mensagem era que a geração do século 20 queria mudar o mundo com banalidades e tinha conseguido.
Uma correção: o furto de uso é fato atípico, segundo a maioria dos autores; exclui, portanto, a tipicidade, não a ilicitude.
A crueldade e a estupidez humana é algo que embora as saibamos ilimitadas a todo momento nos deixa abismado. Esse video que o Marco mostra foi mostrado em uma "video cassetada" no programa do Faustão... todos riram muito do pânico do urso e repetiram várias vezes para o deleite da audiência... (putz!). Posso estar falando alguma bobagem, mas me parece que da pra traçar um paralelo com aqueles programas de tv que mostram a vida nas ditas "comunidades" onde ficamos felizes com a alegria dos miseráveis que levam a vida sem reclamar da sorte e se contorcem pra se livrar das agruras da vida. É o exercício da indiferença nos dois casos: se não nos envolvemos com seres humanos sendo humilhados e expostos na tv como bichinhos amestrados no melhor estilo "olha só que bonitinho, ele não reclama e é feliz com a vida que leva"; o que dizer de nos sentirmos tocados com a humilhação sofrida por animais já que é tudo em nome do divertimento das massas nas modorrentas noites de domingo e a feroz luta pelo ibope. As vezes tenho a impressão que as coisas são feitas para que se pareçam com o mundo encantado dos video games, como se não fossem criaturas de carne e osso. Vai entender...
Essa elevação da indiferença a categoria ética determinante da atualidade me fez pensar longe: o tempo todo estamos elucubrando reformas ou revoluções ao sistema político e econômico que vivemos. Mas qual é o sistema ético que vai presidir essas novas relações? Ao menos me parece que o molde político da pós modernidade é o que melhor se adequou a realidade moral dos indivíduos que o constituem. Quando Aristóteles dizia que o ser humano é gregário, e que se fugisse à essa determinação natural ou era um animal ou um Deus, refletia a situação que vigia entre seus contemporâneos. Quando Rousseau falou que a Democracia era um regime para anjos, a mesma coisa, a sociedade de sua época era composta por indivíduos de tal forma bestializados pelas relações sociais baseadas na hierarquia, que não havia como justificar que todos fossem iguais. Hoje em dia, no ocidente, tudo que é proposto de revolucionário acaba se pasteurizando pela moral kantiana, de obedecimento as regras e leis constituídas. Isso elevou o Direito ao status de ciência humana mais relevante para os dias que vivemos. A humanidade está numa encruzilhada histórica, empacada num modelo ético que não permite maiores audácias.
Indo além, acho que Che intuiu esse problema, como a figura do "hombre nuevo", mas mesmo assim surge como um arquétipo a se desenvolver pós revolução. Estive rememorando que fizemos um curso sobre Ética e Filosofia Política de mais de dois anos, e convivemos com outras pessoas que podem estender esse lapso temporal a mais anos e a verdade é que ninguém durante esse período estudou ética; apenas política.
Como citei anteriormente (de forma equivocada, pois errei o primeiro nome), existe um pensador desses problemas éticos muito interessante na modernidade, chamado Peter Singer. Vale a pena ler, como vale a pena se aprofundar nesse tema para encontramos algo menos pobre do que as análise fenomenológicas de Hannah Arendt.
Concordo com você, Marco, quando você se pergunta sobre o modelo ético que nortearia os dias seguintes a qualquer revolução social, política ou econômica que venha no futuro. Já discutimos esse assunto algumas vezes e por mais que eu pense nisso sempre volto ao mesmo lugar: a propriedade baliza todas as nossas relações sociais desde que o homem fundou as primeiras cidades e a partir disso esforça-se para naturalizar, de qualquer forma possível, as difenças que vêm dessa condição iníqua primeira. Ética em Aristóteles é burilada ou educada pelo hábito do seu próprio exercício; como exercitar a vida virtuosa contida na justa medida ou no caminho do meio se a propriedade por definição aparta para os extremos opostos aqueles que têm e aqueles que não têm e podem apenas reclamar? A única coisa do seu comentário que eu não consegui concordar foi quando você colocou a moral kantiana como pasteurizadora de qualquer ação revolucionária. A despeito de Kant ser um liberal conservador a regras que deveriam ser, por assim dizer, auto impostas derivam dos imperativos categóricos que não me parecem ser pasteurizadores uma vez que são máximas que o indivídio dá a sim mesmo como exercício pleno da sua liberdade; e nesse ponto é onde Kant se aproxima bastante de Rousseau já que para ambos não existe liberdade maior do que obedecer uma lei derivada da sua própria deliberação. Acho que você vai na mosca quando diz que no curso que frequentamos não tivemos nenhum vestígio de pensamento ético, apenas politica como que em um exercício meramente acadêmico despregado de qualquem implicação com mudança real do hábito que pavimenta o caminho rumo à virtu.
A discussão sobre o descaso absoluto acerca da vida animal sempre me envolveu na medida precisa em que presenciá-los me indignou. Ainda pequetita eu rolei no chão algumas vezes com pré-machos que estilingavam passarinhos. Há bem pouco tempo tive uma discussão com uma amiga francesa a respeito da produção do foie gras e ela, que é uma pessoa extremamente lúcida em relação às mais genéricas questões que envolvem “humanidade” – entendida aqui como o atributo do homem que foi retirado do plano da natureza e elevado ao da cultura –, está envolvida com a anistia internacional, tem o árduo trabalho de ensinar filosofia numa escola de ensino médio e buscar elevar minimamente o espírito crítico de uma juventude marcada pela aversão à idéia mesma de reflexão, recolhe cãezinhos abandonados na rua, é de esquerda, enfim, uma pessoa “do bem”. Eu simplesmente perguntei a ela, na maior ingenuidade, se o que se divulgava a respeito da fabricação do foie gras era verdadeiro ou não, já que ela é uma pessoa muitíssimo bem informada acerca de quase tudo que se passa em seu país. Ela demonstrou uma revolta tão grande contra a minha pergunta dizendo que era verdade sim, mas que essa era uma tradição e em tradições não se mexe, e ainda que essa era uma acusação americanófila, e que os norte-americanos, por ela referidos como “les américains”, não tinham nada a ensinar aos franceses já que ela mesma, como membro da anistia internacional, havia denunciado anos atrás a prática de um grupo de “américains” que degustava foie gras de bebês humanos, em sua maior parte traficados a partir da América do Sul, notadamente do Brasil, caso que teria sido abafado porque alguns membros do Congresso “américain” integravam os apreciadores da iguaria. Eu que, graças às forças divinas ou apenas a mim mesma, não tenho afinidade nenhuma com o politicamente correto, emputeci minha chère amie ao dizer primeiramente que eu não acreditava no que ela estava me dizendo, mas que, na remota possibilidade de o caso ser verdadeiro, eu continuava mais indignada com a produção de foie gras de pato e de ganso do que de bebê humano. Para mim a questão se coloca num lugar muito-simples: nessa equação, ainda que os pobres bebezinhos não tenham feito nada de errado (porque ainda não tiveram tempo), eles são membros pertencentes da raça de assassinos e os patos e gansos são membros da raça assassinada. Respinsabilidade pessoal eles não têm, mas como trazemos conosco as vantagens e desvantagens de toda forma de inserção que temos, eles são parte do que eu condeno simplesmente pelo fato de terem nascido. Veja bem, eu não estou defendendo o enjaulamento de bebês em espaços nos quais eles não podem de mover para que não “queimem” a gordura que acumulam graças à excessiva nutrição que deixará seus fígados doentes para alcançarem o sabor maravilhoso do foie gras. Eu apenas estou dizendo que entre práticas igualmente indignas, uma delas me horroriza mais do que a outra, e essa é a da morte do pato, pelo escabroso desequilíbrio de forças que ele envolve. E eu quero equilíbrio. Eu quero justiça. Eu quero que esses bichos sejam ressarcidos com o sofrimento dos seus algozes. É claro que eu sei que para o pato o sofrimento do bebezinho não muda nada, mas na estranha cabecinha que me foi permitido ter, como membro da raça de assassinos que sou, isso faz toda a diferença do mundo, porque, no inferno, capeta que come capeta não me preocupa... eles que são quentes... eles que se entendam. O que eu quero é ressarcimento.
E eis que eu, inegavelmente uma representante da mesma trupe, me pego envolvida nos sentimentos mais violentos e “des-super-humanos” que acuso no meu congênere. Não o nego. Não me pretendo superior. Há poucos dias eu falava em sala de aula d’O Triunfo da Vontade, da Leni Riefenstahl, e um aluno me interpelou (depois da aula, evidentemente, não em público porque é um covarde) me perguntando o que é que eu tinha contra o nazismo. Eu contornei o fluxo violento de sensações misturadas e inenarráveis que aquela pergunta suscitou e placidamente devolvi a pergunta: “o que é que você tem a favor”. Ele veio com uma ladainha de que era contra o racismo mas a favor da morte de todos os incapazes (deficientes físicos e mentais, velhos, aposentados, etc.) porque achava que quem não tem condições de trabalhar não merece viver. Como eu penso que há casos sem salvação, me restringi a dizer que se o mundo dos sonhos dele se tornasse realidade e todo “incapacitado” fosse abduzido da face da Terra, viveríamos um mundo de pleno emprego e o capitalismo ruiria, e quem sabe se essa não seria a conseqüência não-intencionada – para usar uma expressão do Weber –, ironicamente positiva, do horror inominável. E eis que estamos nós avaliando dessa forma, despidos de qualquer sentimento, quais dentre nós devem morrer e quais devem viver. Mas pelo menos estamos entre os nossos, e não assassinando animais que se aproximam pedindo carinho e abanando o rabo, ou covardemente assassinando em massa espécies fáceis de emboscar, como o golfinho, porque uma vez que um seja capturado, o resto do bando não o abandona. Eu, na posição mais nazista que me permito assumir, acho, como Saramago, que a experiência da humanidade não valeu a pena. Por isso não tenho filhos, não darei minha contribuição ao que para mim é uma experiência natimorta. E todas as vezes que eu vejo imagens como essas dos golfinhos assassinados no Japão ou na Dinamarca, animais presos em cubículos, cachorros amarrados em postes no mês de agosto em Paris porque seus donos saíram de férias, e a lista aqui seria infinita, eu desejo sinceramente que a humanidade acabe de hoje para amanhã, que todas as mulheres sejam esterilizadas e que o fim seja planejado para todos e rapidamente. Eu não sou, portanto, melhor do que meu aluno. Mas, como disse, penso que há casos que não têm solução e nós certamente somos o principal deles.
Transcrevo o trecho do Saramago, que está no seu diário Cadernos de Lanzarote, que ele escreveu no dia em que assistia pela TV ao extermínio dos croatas pelos sérvios em Sarajevo: “Chorei enquanto as imagens terríveis se sucediam, chorei por aqueles desgraçados, chorei por mim mesmo, por esta impotência, pela inutilidade das palavras, pela absurda existência do homem. Só me consola saber que tudo isto acabará um dia. Neste derradeiro instante o último ser humano vivo poderá dizer enfim: ‘Não haverá mais morte.’ E terá de dizer também: ‘Não valeu a pena termos habitado este lugar do universo’.”
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